domingo, 11 de setembro de 2011

Os Anos de Aprendizagem Entrevista com Stefan Aust e Georg Mascolo (Mais!)



São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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O editor e um jornalista da
revista "Der Spiegel", que
publicou um amplo dossiê
sobre o 11 de setembro,
explicam o papel central da
"célula de Hamburgo" na
organização dos ataques e
rebatem tese de que a
Alemanha teria sido
escolhida a dedo

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José Galisi Filho
especial para a Folha

Às 22h18 de 12 de setembro de 2001, o FBI enviou um fax para a embaixada americana em Berlim com uma lista de 19 suspeitos sob o título "Twin Towers Bombing". Minutos depois, a relação chegava à sede da Polícia Federal Alemã, a BKA. Uma coincidência já chamava a atenção: três nomes apontavam para Hamburgo, especificamente para uma rua de periferia no sul da cidade: Marienstrasse 54. Foi nesse apartamento de 58 m2 que os discípulos de Bin Laden -o egípcio Mohammed Atta [considerado hoje pelo governo dos EUA o líder dos 19 sequestradores dos aviões em 11 de setembro", Marwan Al-Shehhi, dos Emirados Árabes Unidos, e o libanês Ziad Jarrah, entre muitos outros- encenaram um capítulo central da peça didática para o lançamento do Novo Evangelho do Terror Mundial na manhã de 11 de setembro.
A "célula de Hamburgo", liderada por Atta, combinou a energia emocional do autodesprezo, o ódio e a química claustrofóbica do gueto com uma disciplina formidável, feita de coordenação, auto-renúncia, logística e know-how.
Atta, nascido no Cairo um ano após a Guerra dos Seis Dias (1967), chegara à Alemanha em 92 para fazer um mestrado em planejamento urbano e urbanismo na Universidade Técnica de Hamburg-Harburg. A transformação de um acadêmico frustrado num dos maiores terroristas da história é objeto do dossiê "Spiegel" sobre o 11 de setembro ("A História de um Atentado", ed. Spiegel, 24,50 euros). O dossiê é uma leitura obrigatória para entender os "anos de aprendizagem" de Atta na escola do anti-semitismo genocida.
Operando como um mosaico, o dossiê ilumina os bastidores do atentado: de sua preparação em Hamburgo até a luta desesperada pela vida nas duas torres, podendo ser lido tanto como uma reportagem quanto como um romance. O que ocorreu entre as 6h e as 11h daquele dia, quando a torre Norte finalmente desabou, é relatado, de maneira inquietante, sobretudo da perspectiva dos assassinos. Stefan Aust, editor-chefe da revista e do programa de TV Spiegel, no canal Vox, e o jornalista Georg Mascolo, um dos responsáveis pela apuração dos passos de Mohammed Atta em Hamburgo, falaram com exclusividade ao Mais! sobre a "célula de Hamburgo" na sede da revista.

Como foi o trabalho de preparação desse dossiê?

Imediatamente após o ataque, organizamos um time em dois setores: uma parte da equipe pesquisou com o apoio dos correspondentes em Nova York, enquanto outra realizava um levantamento de todas as conexões da assim chamada "célula de Hamburgo". Depois mandamos para os Estados Unidos um grupo de repórteres para uma descrição pormenorizada da preparação do atentado, já em solo americano, entre 2000 e 2001. Essa é a primeira parte do dossiê, em que procuramos relatar as várias perspectivas do fato, de dentro dos aviões, nos corredores do WTC, o trabalho dos bombeiros etc. O trabalho de equipe funcionou muito bem, como constatamos.

Mais uma vez, em solo alemão, o anti-semitismo radical forjou uma estratégia para o extermínio no exterior. Por que a Alemanha tornou-se uma frente da Al Qaeda? Existiria uma convergência cultural entre a lógica do gueto alemão e este "amok" suicida da "célula de Hamburgo"?

O fato de essa célula ter se constituído em Hamburgo foi, a princípio, um acaso espacial. Poderia ter sido em Duisburg, Frankfurt ou mesmo em Londres e Paris. Em todas essas outras cidades há anti-semitas radicais, não apenas nas comunidades muçulmanas, mas também organizados politicamente. Anti-semitismo radical existe também na América do Norte, como sabemos. Não vejo nenhum motivo em vincular esse anti-semitismo à história política da Alemanha. Sabemos que muitas vozes na imprensa estrangeira sugerem que essa é a continuação do Terceiro Reich por outros meios. Mas ninguém levanta a voz quando o prédio do centro cultural da comunidade judaica é colocado abaixo em Buenos Aires, deixando 96 mortos, no dia 18 de julho de 1994. Ninguém ousa afirmar que "isso é tipicamente argentino" porque o governo de Perón deu abrigo durante décadas a milhares de nazistas foragidos. Infelizmente há fundamentalistas e anti-semitas nas Filipinas, no Egito, na Arábia Saudita e também nos EUA, não só na Alemanha. O segundo homem da Al Qaeda, o egípcio Al-Schwari, o "Doutor Morte", viveu muitos anos na Dinamarca. A escalação demencial, encabeçada por Mohammed Atta, sem dúvida encontrou seu combustível em Hamburgo. Foi daqui que Atta e seus asseclas planejaram a espinha dorsal da operação que teve seu desfecho em Nova York, na manhã de 11 de setembro. Foi uma transformação de um pequeno grupo de fanáticos religiosos em homicidas de massa. Aconteceu em Hamburgo, mas poderia ter ocorrido em Paris ou Londres. Mas compreendo sua questão: como e por que justamente nesse meio as condições eram mais favoráveis para desenvolver um projeto de médio prazo e com tal nível de articulação. Em primeiro lugar, porque a Alemanha é uma sociedade liberal, ao contrário dos seus países de origem, que são Estados policiais e teocracias, como a Arábia Saudita. Numa sociedade aberta, em princípio você pode fazer o que bem quiser.
Atta e seu grupo vinham de um Egito ou um Iêmen no qual eram perseguidos e teriam, mais cedo ou mais tarde, terminado na cadeia. As chances de eles terem se articulado nesse grau por lá eram muito pequenas ou quase nulas. A todo momento a polícia desses países desbarata esses agrupamentos. Ocorreu, no início dos anos 90, um verdadeiro êxodo de terroristas para o Ocidente liberal, onde eles encontrariam um nicho propício para desenvolver suas atividades, livres das perseguições religiosas de seus países de origem. Foi assim que, sob a fachada do "Grêmio Muçulmano" de Mohammed Atta, na Universidade Técnica de Hamburg-Harburg e na mesquita de Al Kodh, a "célula de Hamburgo" encontrou um terreno perfeito para se desenvolver.

Para o FBI, Hamburgo foi a "base central da operação", como declarou num primeiro momento o ministro americano da Justiça, John Ashcroft, a Otto Schilly [ministro do Interior alemão], quando este visitou Washington. Esse parece ser um ponto sensível nas relações bilaterais. Uma personagem como o comerciante sírio-alemão Mamoun Darkanzali, que sustentou financeiramente a operação, já estava na mira da CIA desde o atentado que destruiu a embaixada americana de Nairóbi (Quênia). Por que outros membros da Al Qaeda continuam livres? E como é a cooperação entre o FBI e a BKA?

O papel central de Hamburgo é inquestionável, mas houve também outros lugares. Todos os sequestradores e seus cúmplices estiveram, como os indícios apontam, ao menos uma vez no Afeganistão. Houve vários encontros na Espanha e em Praga. Infelizmente temos de admitir que a lei alemã tem uma dificuldade enorme de enquadrar o islamismo radical. Podemos também partir do princípio de que a Al Qaeda se serviu dessas brechas para firmar uma base estável aqui, sob vários negócios de fachada, para transferência de dinheiro. Darkanzali é um dos casos. Ele já foi alvo de inquéritos, mas não existe nenhuma base legal para uma ordem de prisão preventiva, nenhum indício que permita enquadrá-lo nesse sistema. O trabalho entre o FBI e a BKA não é, de fato, nada fácil, pois os americanos se sentem no direito de serem notificados a respeito de tudo, mas a recíproca não é verdadeira.

Quantos terroristas dormentes ("Schläfer") existem na Alemanha?

Podemos apenas especular sobre esse número, mas as autoridades partem de uma estimativa de que pelo menos 300 pessoas estejam diretamente envolvidas nessa rede de terror, muitas das quais ainda permanecem aqui, em Hamburgo.

O sr. vê vínculos entre esse grupo e extremistas na fronteira do Brasil e Paraguai?

Não tenho elementos para afirmar isso, mas existem tantos grupos organizados que a possibilidade de eles estarem interligados não pode mais ser excluída.

O dossiê enfatiza também uma diferença de temperamento muito grande entre os membros da célula. Como poderíamos caraterizar Mohammed Atta, Al-Shehhi e Jarrah, que dividiram o apartamento da Marienstrasse 54?

Há muitas especulações quanto a esse ponto, mas parece certo que Atta seria o mais radical de todos, o líder inconteste. Não achamos que tenha sido um acaso ele ter pilotado o primeiro avião. Jarrah era certamente o mais inseguro de todos, a sua trajetória é a mais oscilante e talvez ele tenha hesitado no fim em marchar até a morte. Quando levamos em conta a diferença de temperamento entre os três, não parece também ter sido por acaso que o seu avião tenha sido o único que não terminou sua trajetória suicida.

Existe um sentimento antiamericano nesta sociedade? Como o sr. avalia a estratégia do atual governo um ano após o atentado? A União Européia conseguirá articular uma política de segurança externa comum?

Não acredito que exista uma posição antiamericana. Há diferenças políticas, que agora se tornam mais claras diante do caminho errático e solitário do governo Bush. Como nosso chanceler enfatizou, não vamos nos aventurar no Iraque, pois não somos vassalos da política externa americana, mas aliados, o que é diferente. A "solidariedade ilimitada" que [o premiê alemão Gerhard] Schroeder garantiu imediatamente após o ataque era uma solidariedade na Otan (aliança militar ocidental), e Schroeder foi coerente e determinado nessa linha ao enviar tropas ao Afeganistão, mesmo com uma grande resistência em suas fileiras, colocando inclusive seu governo à prova, ao tratar a questão no Parlamento como moção de desconfiança. Seria desejável se um dia a UE afirmasse diante da Otan uma perspectiva comum e independente das oscilações da política externa americana. Mas, diante da instabilidade mundial desencadeada pelo 11 de setembro, não podemos nem mesmo fazer um prognóstico de quando isso irá ocorrer.

José Galisi Filho é mestre em teoria da literatura pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutor em germanística pela Universidade de Hanover (Alemanha).

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